Monday, June 28, 2010

O que não tem remédio, remediado está











A noite está sobre Quinhamel. Uma lua que eu nunca sei se é cheia ou nova toca o rio fazendo uma estrada de luz.

Há o coaxar dos sapos. Pássaros da noite, tornando-a de dia - movimento e som. Uma coruja com os seus grandes olhos fixou-se em mim, quieta como se lá não estivesse. As árvores, erguendo-se majestosas e espelhando-se no rio, testemunhas centenárias de todo este movimento e som nocturno. Não há nenhum som que da natureza não seja.

Pego num balde com água e vou por entre as árvores e lavo-me e a água que pelo meu corpo passa vai para a terra, alimentando-a. Brincando com a água nas minhas mãos rego as árvores. Brinco e rio-me, do que a natureza estará pensando de mim.

Vou até ao rio para me sentir nesta simbiose perfeita. Saúdo o deus do rio.

A noite tem sobre mim este mistério de protecção.

O carro há-de chegar para nos levar a Bissau. Passam e passam as horas. Neste longo entretanto vamos conversando pela noite adentro, eu e a Arasi. As crianças estão dormindo, cansadas de tanto brincar durante todo o dia.

Noite já alta, chega o carro.

De carro tem apenas quatro rodas, um motor e uma chapa bem velha.

Bateria está mal, temos que o colocar numa descida para apanhar balanço. Os máximos são os mínimos pela estrada dentro. O tablier completamente às escuras. Os amortecedores são ferros sobre ferro. A direcção guina para a esquerda e travão de mão, não há, já não falando da ausência do cinto de segurança. Cinquenta quilómetros à nossa frente.

O carro vai andando, cortando a noite, passando pelo “chão” de Papel (território do grupo étnico Papel). As grandes árvores vão deslizando pelos meus olhos e o mato profundo, bem além. As crianças acordaram e todos vamos de olhos bem abertos, sentindo o vento quente nos rostos.

Todo o mistério do chão de Papel acompanha-nos nesta viagem pela noite. Sinto-me bem, apesar dos receios sem motivo de toda a força deste “chão”. Aspiro o ar, olho a luz viajando connosco e assim vamos absorvendo quilómetro a quilómetro, lentamente porque luzes quase não temos.

E porque o que não tem remédio, remediado está este velho carro já cansado da vida e respeitando-o na sua velhice mas curvando-me à generosidade de conseguir dar-nos ainda uma viagem, mesmo atribulada – as minhas mãos iam dando-lhe força para mais um quilómetro a vencer.

E assim cheguei à minha casa, tarde ou de manhã. Cheguei tarde de noite? Ou de manhã muito cedo?

3 comments:

  1. Muito bonitos os teus textos. Apesar de uma realidade dura há sempre a natureza magestosa e solidária.
    Dão-me umas saudades nem eu seu do quê, pedacinhos de coisas que vivi,vontade de sair daqui, de me alhear deste mundo da treta, das preocupações da treta, da gente da treta...

    ReplyDelete
  2. Qualquercoisa que queira dizer, será aempre a manifestação de um profundo carinho por África e pelos africanos!
    Cada "estória" é uma lição!
    Parece que tenho saudades, mesmo sem nunca aíter estado!

    ReplyDelete
  3. Paulinha, as tuas vivências nessa terra serão um tesouro que transportarás contigo. Vale a pena, mesmo com todas as dificuldades!
    Vai ser bom ouvir-te a reproduzir, ao vivo, tudo o que vivenciaste!
    Cá esperamos por ti!
    Bjs. Rosário

    ReplyDelete