Friday, September 3, 2010

MGF-5- A sacralização do Projecto Djinopi




(Reunião de toda a equipa do Djinopi 17 Julho 2010-Bissau)

Foi apresentado ao grupo o Poilão do Djinopi (em tela). A apresentação deste Poilão teve como objectivo a criação de uma Unidade dentro do Djinopi para que todos sintam o Djinopi como um TODO e não apenas ser uma parte.

Perante o Poilão fizeram-se as seguintes perguntas:

  • · Porquê um Poilão? (muitas destas árvores são consideradas sagradas porque têm os espíritos dos mais velhos)
  • · O que é que o Poilão tem? (folhas, ramos, tronco, raízes)
  • · Como se alimenta o Poilão? (a água é um elemento que entra na terra e alimenta o Poilão pelas raízes e faz um Poilão forte e bonito)

De seguida passou-se à visualização do Poilão como sendo o Poilão do Djinopi e fizeram-se as seguintes perguntas:

  • · Quem são os ramos do Poilão?
  • · O Poilão protege quem?
  • · Quem são as raízes?
  • · O que alimenta o Poilão?

Depois desta dinamização dividiram-se os participantes em 4 grupos de trabalho, para que cada grupo pudesse responder às perguntas colocadas, de forma a que mais tarde pudéssemos colocar no Poilão todas as possíveis respostas.

Trinta minutos depois cada grupo deu as informações sobre as perguntas e foram colocadas no Poilão. Desta forma, com a participação de todos, o Poilão do Djinopi ficou completo e muito forte.

Depois do Poilão estar com todas as informações dos participantes foi mostrado a todos pequenos búzios, dizendo-se que cada búzio representa uma ONG envolvida no Djinopi. Assim todas as pessoas foram chamando as ONGs: WFD, René-Renté, Al-Ansar, Rede Ajuda, Okanto e Sinin Mira. Cada grupo de cada ONG levantou-se chamando a sua ONG.

Finalmente mostraram-se os 6 búzios envolvidos num fio vermelho e foi colocado num dos ramos do Djinopi.

(Este processo tradicional de sacralização, (tornar sagrado), do Poilão chama-se “Mandji ou Mandjidura”.

São processos muito importantes para a cultura guineense, tornando o Poilão como uma entidade espiritual e de protecção das comunidades, neste caso de entidade espiritual do Djinopi e de protecção do Djinopi na luta contra a mutilação genital feminina.)

Todos os participantes estavam envolvidos neste processo. Mas era necessário tornar o Djinopi também como um compromisso interno e também um compromisso de cidadania. Sendo assim foi distribuído por todos os participantes colas brancas. Estas colas (15) foram divididas ao meio e distribuídas pelos outros participantes, transformando 15 em 30. Cada participante comeu a sua parte da cola.

(Este compromisso é do ponto de vista cultural o maior compromisso que se pode tomar e ninguém o pode quebrar. Salienta-se que entre os participantes havia um Aladje (líder religioso) que tornou ainda mais forte este compromisso.)

Depois deste processo a alegria tomou conta da reunião. Todas as pessoas estavam muito contentes, valorizando o Poilão e tornando-se parte integrante dele.

TODOS NÓS SOMOS O POILÃO DO DJINOPI.

Esta tela com o Poilão do Djinopi ficou na parede durante toda a reunião e estava cheio do simbolismo da nossa Unidade e do nosso engajamento e no compromisso nas comunidades onde trabalhamos.

Foi um momento muito importante do nosso trabalho que envolveu todas as pessoas no sagrado e no compromisso da luta contra a mutilação genital feminina.

MGF-4-Carta de uma fanateca



























Fatumata Turé em 2003 entregou a faca, Em Farim – norte da Guiné-Bissau, numa cerimónia pública de juramento contra a excisão.


(Carta da Fatumata Turé ao Projecto Djinopi - Julho 2010)

Eu, Fatumata Turé fui fanateca durante muitos anos. Através desta prática consegui sustentar a minha família. No entanto fui convidada a participar no projecto Direito das Mulheres em 2003 e abracei este projecto de muita importância para a defesa dos direitos das crianças, das mulheres e da sociedade em geral. A partir daquele momento jurei que nunca voltaria a fazer essa prática (excisão) mas durante 5 anos da minha vida até ao presente não foi criada nenhuma condição necessária ou adequada para o sustento da minha família. Por isso peço para me ajudarem com um pequeno terreno para construir uma casa onde vou estar com a minha família até à morte. Por outro lado tenho dificuldades em pagar as propinas para a escola dos meus filhos e netos e não tenho ninguém na família que me pode ajudar. Peço para me ajudarem a criar condições.

Fatumata Turé

MGF-3-Fanatecas









As fanatecas são mulheres que fazem a excisão dentro dos rituais de iniciação chamados “fanados”.

Os fanados são muito importantes para a comunidade. É um entrelaçamento entre a educação formal e informal. Nos fanados as meninas recebem todo o tipo de informação de educação informal que é importante para a comunidade e é um elo de pertença ao seu grupo étnico. Infelizmente nestes fanados tradicionais das meninas é praticada a excisão.

No Djinopi temos fanatecas que estão a trabalhar connosco como animadoras ou facilitadores do Projecto na luta contra a mutilação genital feminina.

São mulheres que abandonaram ou estão em vias de abandonar a prática da excisão;

São mulheres com muito poder dentro da comunidade e pontes importantes no trabalho de luta contra a MGF;

São mulheres que têm uma grande influência na comunidade;

Temos que, todos os dias, trazer mais fanatecas para o nosso trabalho, engrossando assim o número de fanatecas que abandonam a prática.

Temos que, em conjunto com elas, encontrar formas de auto-sustentabilidade económica para cada uma delas, porque é através da prática da excisão que elas têm algum dinheiro para as suas famílias. É um caminho longo mas viável.

O meu abraço grande e fraterno para as fanatecas Fátima Sanhá, Fatumata Turé, Aminata Camará, Binto Sané e Fátima Dicó e para tantas outras que irão apoiar o nosso Projecto Djinopi.

Incha'allah

MGF-2-Os Rostos da Luta










A luta contra a MGF na Guiné-Bissau tem muitos rostos.

Este é o grupo de coordenadores do Djinopi.

Coragem Companheiros de Luta!

MGF-1-A corajosa equipa do Djinopi


Esta é a equipa do Djinopi que vai trabalhar contra a mutilação genital feminina na Guiné-Bissau entre 2010 e 2012.

É uma equipa maioritariamente de mulheres, pessoas valentes e corajosas.

Bem hajam e bom trabalho!

Tuesday, July 27, 2010

Visita frustrada ao Mausoléu de Cabral na Amura



















.

No dia 22 decidi dar uma aula de história ao meu querido Lassana, príncipe mandinga de 7 anos.

Fomos até ao Palácio e ele viu o que uma guerra pode fazer a um país: transformá-lo em escombros, mortos e tristeza.

Entrámos no Palácio onde agora vivem centenas de morcegos. Vimos as marcas das balas – e falámos de como as guerras apenas trazem coisas más.

Continuámos a nossa pequena viagem pela cidade.

Fomos à sede do PAIGC e entrámos. Vimos a fotografia de Cabral e falei-lhe de Cabral – pai desta nação!

A sede estava deserta, apenas um homem dormia, sono santo, nas escadas da entrada.

Fomos à Amura, quartel antigo do tempo colonial, onde repousa o corpo de Cabral. Demos a volta à Amura e vimos os antigos canhões dos portugueses.

Queria mostrar-lhe o Mausoléu de Cabral, visitado por mim em 1977.

Falei com alguns militares para poder ter acesso ao quartel da Amura. Consegui e, lá fomos para a Amura.

Os militares da porta de armas foram muito simpáticos mas tínhamos que ir falar com a PM (Polícia Militar) e lá fomos.

No caminho mostrei ao Lassana o carro velho, degradado e em muito mau estado de Cabral. Um Volkswagen que veio de Conacry. A este carro já lhe falta tudo: rodas, luzes, assentos, etc. É uma pena que a Guiné-Bissau não tenha tido ao longo dos anos o respeito merecido por Cabral.

Há pouco tempo o Projecto Mom Ku Mom, juntamente com militares cobriu o carro, defendendo-a assim de mais degradação.

Chegámos à PM, onde estava um PM sentado e disse que não era possível visitar o Mausoléu. Tinha que escrever uma carta ao Estado Maior das Forças Armadas e fazer o pedido. Disse-lhe que não tinha tempo para fazer isso, pois já estava de saída da Guiné e que antes de sair gostaria de mostrar ao Lassana o lugar onde está Cabral. Foi irredutível na sua força burocrática, senão militar. Ainda tentei que houvesse um pouco de bom senso, insistindo em visitar o Mausoléu. Sem efeito.

Saímos da Amura.

Pergunto eu:

O Mausoléu de Cabral é propriedade dos militares?

Porquê este pedido ao Estado Maior?

Para mim não tem sentido!

Ai Cabral, não era isto que tu querias para a tua nação.

A Guiné-Bissau deveria facilitar o acesso ao Mausoléu para todas as pessoas, em especial para as novas gerações guineenses – eles sim, o futuro deste país!

Querido Lassana, num futuro próximo iremos visitar Cabral.

Incha'allah!

Aos meus companheiros das Palavras

Nestes 2 meses e meio agradeço, ao nosso Saramago, ao Mia Couto, ao José Rodrigues dos Santos, ao Luís Sepúlveda, à Jasvinder Sanghera, à Alice Munro, à Doris Lessing, ao Mário Vargas Llosa, ao António Pinto da França, que me acompanharam pelas noites dentro na Guiné-Bissau.

Obrigada

Wednesday, July 14, 2010

Terra de direitos desumanos

Ai.... este Mia Couto que me faz apaixonar pelas palavras


"... Que eu sei e que desfaço de contas que não há provas. Todavia, pergunto eu: chego e calabouço-a assim, como se o nosso país fosse terra de direitos desumanos? Ainda por cima com o nariz dessa malta estrangeira por aí a cheirar-nos?...."

In "O Último Voo do Flamingo" - Mia Couto

Tuesday, July 13, 2010

O Último voo do Flamingo

- A guerra já chegou outra vez, mãe?

- A guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda.

In “ O Último voo do Flamingo” – Mia Couto



Sunday, July 11, 2010

Mulheres com H grande

Ao longo dos anos que por aqui fui passando percebi-me da força das mulheres neste país.

São elas o suporte das famílias.

E são elas que pela manhã vendem no mercado, tendo assim dinheiro para a comida da família nesse dia.

E são elas as donas do fogão.

E são elas, que subtilmente, detém o poder dentro da família e na comunidade.

E são aquelas mulheres-grandes, com sabedoria, que vão conduzindo a família e a ligação entre e estar e o não estar.

E são as mandjuandades, organizações de mulheres, com os seus mistérios e saberes.

E são as matronas, parteiras tradicionais, de conhecimentos antigos.

E são as fanatecas, detentoras de um poder real e misterioso inatingível.

E são as mulheres, talvez as primeiras a saber, acontecimentos que hão-de vir.

Mesmo sabendo eu o quanto elas estão sujeitas às questões culturais mais ou menos dramáticas – vão caminhando neste caminhar de influências e de poder.

Assim as fui vendo e sentindo.

Golpe, não golpe. Assassinato, não assassinato. Pobreza, não pobreza. Elas têm sido os pilares da sobrevivência destas famílias e deste povo.

A violência sobre as mulheres fica dentro do privado da casa ou da família e assim perpetuando-se culturalmente.

Raramente se via neste país alguém insultar uma mulher em público. E quando a discussão aquecia é a mulher que chama a atenção de que ela pode ser a mãe, a avó ou a tia – e vi muitas vezes os homens curvarem-se a este peso de respeito cultural.

Na passada semana uma coisa aconteceu que me surpreendeu e que me fez cerrar os dentes.

Um grupo de militares bateu, em pleno centro da cidade, em 3 mulheres polícias com tal violência que foram hospitalizadas.

Bateram em mães, em avós, em tias…

Uma porta se abriu – antes cerrada.

Saturday, July 10, 2010

Cabral, cidadão do mundo!






















Passeava eu, ao fim da tarde, pelo porto de Bissau. Procurando lugares na minha memória.

E vi-te Cabral. Na tua pequena estátua, olhando para além do Rio Geba, cruzando o sul e viajando pelo continente. Cabral, cidadão do mundo.

E olhei-te mais uma vez. O monumento que deveria estar limpo estava rodeado de ervas daninhas. Nas tuas costas um monte de lixo. E uma mulher louca tomou-te como lugar de viver a desesperança.

Tu Cabral que és o pai e a mãe desta nação guineense, estás só, sem ninguém a cuidar de ti.

Um dia, nas ilhas distante, ouvi: Kabral ka muri!

Quantas vezes te estão matando? Quantas vezes, Cabral?

Quando acaba esta morte prolongada?

E o meu coração se aperta na tua infinita tristeza.


Sunday, July 4, 2010

A pequena máquina de café












Era uma vez uma pequena máquina de café….. era uma vez um técnico da máquina de café. E aqui terminaria a história, se a história não se prolongasse no infinito tempo da Guiné.

Vou começar outra vez.

Era uma vez uma pequena máquina de café e um técnico da máquina de café – e aqui começa uma história de amor para mim surpreendente.

A máquina de café avariou há muitos meses atrás. Ficou abandonada num canto, até que se chamou um técnico, meticuloso, atencioso, esmeroso e assim começou uma relação que já vai por 4 semanas e, por outras tantas se prolongará

Todos os dias, ou quase, o técnico chega.

Coloca carinhosamente a máquina à sua frente – e é um ver de cuidado a forma como ele trata a máquina. Tira uma peça, limpa-a, coloca-a outra vez, tira outra e assim sucessivamente, esteja calor, ou esteja chuva torrencial. E os dias vão passando neste mistério misterioso da pequena máquina de café.

E ainda há aquele olhar surpreendente do técnico para a máquina, olhando, revirando os olhos pensativamente.

Um dia e, espero que nunca chegue, a máquina exercerá a sua função: tirar cafés para os clientes do restaurante. Mas aí, a pequena máquina de café jamais terá o carinho das mãos do técnico – ou então a saudade falará mais alto e avariar-se-á e, gloriosamente, ficará à espera daquelas mãos carinhosas.

Monday, June 28, 2010

Transporte alternativo





















Pelo norte e pelo leste eis um transporte alternativo muito usado.

E eu a caminho de uma reunião de mulheres em Farim – norte de Bissau. Os meus pés já doíam e o calor era imenso….

Alargando o ouvir











E a electricidade foi-se. Esta imprevisibilidade não deixa planificar ou organizar seja o que for. Ainda tento continuar a trabalhar no computador e o suor vem, escorrega e, cai no teclado. Limpo o rosto com a toalha que está na cadeira mas o sal do suor faz-me arder os olhos e, desisto.

Procuro na casa o entrar e o passar da leva brisa de fora. Fico no entre janelas e ali me instalo com o meu computador, sem o menor movimento.

Olho para as folhas do mangueiro que se movimentam preguiçosamente e alargo o meu ouvir aos sons que entram por mim adentro.

Trok.. trok… são os camiões que fazem este caminho do porto até a algum lugar. É a campanha do caju que muda temporariamente os sons deste país;

Num carro parado ouço o rádio. Está muito alto. Há uma notícia sobre o mundial de futebol… qualquer coisa sobre Mandela;

Há vozes altas na rua. Alguém discutindo… naquele tom agressivo que não deixa espaço para o apaziguamento;

Ouvindo a troca de saudações, aquelas longas saudações daqui… Como está o corpo? Como está a família? Como estão os meninos? Como está a casa? – interminável mas, uma feliz pausa, na sombra, no lento andar debaixo deste sol abrasador.

Gargalhadas de crianças. Talvez daquelas meninas de sorriso iluminado que vendem todo o dia e pela noite dentro, um pratinho de amendoins.

Pum… pum… é a faca ou cutelo a cortar a carne de porco que há pouco chegou ao restaurante. O som é arrepiante.

Chega-me um som cristalino, suave. Vou à janela e eis a água a sair do cano, debaixo das raízes do mangueiro. Finalmente água. Há 3 dias que não havia água. E eu, tentando economizar a água que tinha, usando duas ou três canecas de água para tomar banho. As empregadas do hotel iam buscar água a um lugar longe. Chegavam, de manhã, com o corpo cansado e suado.

A bateria do meu computador já está fraquita. Continuo neste entre janelas, esperando que chegue a electricidade...

O que não tem remédio, remediado está











A noite está sobre Quinhamel. Uma lua que eu nunca sei se é cheia ou nova toca o rio fazendo uma estrada de luz.

Há o coaxar dos sapos. Pássaros da noite, tornando-a de dia - movimento e som. Uma coruja com os seus grandes olhos fixou-se em mim, quieta como se lá não estivesse. As árvores, erguendo-se majestosas e espelhando-se no rio, testemunhas centenárias de todo este movimento e som nocturno. Não há nenhum som que da natureza não seja.

Pego num balde com água e vou por entre as árvores e lavo-me e a água que pelo meu corpo passa vai para a terra, alimentando-a. Brincando com a água nas minhas mãos rego as árvores. Brinco e rio-me, do que a natureza estará pensando de mim.

Vou até ao rio para me sentir nesta simbiose perfeita. Saúdo o deus do rio.

A noite tem sobre mim este mistério de protecção.

O carro há-de chegar para nos levar a Bissau. Passam e passam as horas. Neste longo entretanto vamos conversando pela noite adentro, eu e a Arasi. As crianças estão dormindo, cansadas de tanto brincar durante todo o dia.

Noite já alta, chega o carro.

De carro tem apenas quatro rodas, um motor e uma chapa bem velha.

Bateria está mal, temos que o colocar numa descida para apanhar balanço. Os máximos são os mínimos pela estrada dentro. O tablier completamente às escuras. Os amortecedores são ferros sobre ferro. A direcção guina para a esquerda e travão de mão, não há, já não falando da ausência do cinto de segurança. Cinquenta quilómetros à nossa frente.

O carro vai andando, cortando a noite, passando pelo “chão” de Papel (território do grupo étnico Papel). As grandes árvores vão deslizando pelos meus olhos e o mato profundo, bem além. As crianças acordaram e todos vamos de olhos bem abertos, sentindo o vento quente nos rostos.

Todo o mistério do chão de Papel acompanha-nos nesta viagem pela noite. Sinto-me bem, apesar dos receios sem motivo de toda a força deste “chão”. Aspiro o ar, olho a luz viajando connosco e assim vamos absorvendo quilómetro a quilómetro, lentamente porque luzes quase não temos.

E porque o que não tem remédio, remediado está este velho carro já cansado da vida e respeitando-o na sua velhice mas curvando-me à generosidade de conseguir dar-nos ainda uma viagem, mesmo atribulada – as minhas mãos iam dando-lhe força para mais um quilómetro a vencer.

E assim cheguei à minha casa, tarde ou de manhã. Cheguei tarde de noite? Ou de manhã muito cedo?

Friday, June 25, 2010

A generosidade dos que menos têm












Precisava de comprar uma resma de papel e assim saí a caminho do supermercado. Normalmente compro as coisas em frente ao hotel, numa pequena loja dos mauritanos – mais conhecidos pelos “narres”. Perguntando a razão deste nome, alguém me explicou que a palavra “narre” significa fogo e que em tempos idos os mauritanos, a cavalo, ao invadir o norte da Guiné, incendiavam as casas mandando tochas de fogo. Será verdade? Não sei. História contada.

Bem, e aí fui andando para o supermercado. Calor intenso com uma humidade pegajosa.

Ao chegar, alguém chamou o meu nome – era uma jovem mulher que me conhecia, vendedora de fruta, a quem sempre comprava belíssimos mangos e papaias. Há 7 anos atrás era menina, tinha 12 ou 13 anos. Perguntou-me por onde tenho andado, porque há muito tempo que não me via. Tinham passado anos. Disse-lhe que tinha estado em Portugal e que agora estava aqui por alguns meses. Queres fruta? – perguntou-me ela. Não minha querida, estou no hotel. Não preciso. – respondi eu.

Apesar da minha negativa o sorriso dela iluminou o seu rosto. Rosto bonito.

Está grávida. Uma barriga bonita. Tem agora 20 anos e espera vir a ter uma menina.

Entrei, comprei a resma e saí. Ela estava à porta à minha espera com um saco de plástico e deu-mo. Abri. Era fruta. Queria recusar porque era o seu ganha-pão. Ela insistiu, dizendo que era um presente para mim. Aceitei. Abri o saco. Eram bananas, uma papaia e 4 mangos. Fiquei emocionada. Dei-lhe um beijo e agradeci.

Subi a rua a caminho de casa e os meus olhos estavam embaciados.

A generosidade dos que menos têm – o prazer de oferecer, a partilha, a saudade, a ternura!

Fatumata Djaló, quisera eu poder dar-te um mundo melhor.

Saturday, June 19, 2010

Os Djugudés









Os meus companheiros de todos os dias. Abro a janela – e lá estão, pacientes como se todo o sentido da vida passasse por eles.

Têm um caminhar estranho, vacilante. Parece que a terra não lhes pertence e é no ar que mostram toda a sua magnificência. Abrem as suas asas negras ao vento, mesmo à mais pequena brisa e, são donos do mundo.

Com o calor ficam quietos, bem quietinhos, procurando a mais pequena sombra.

Em frente à minha janela, no outro lado da rua, há uma lixeira. Lugar deles partilhado pelos cães e pelo gatos da rua.

Lixeira de restos do restaurante, e eu pensando porque não colocam o lixo no contentor, bem perto que está? Dizem que o contentor está cheio de lixo. Será?

Na verdade é esta lixeira que dá de comer aos djugudés, aos cães e aos gatos. Bendita sejas!

E há uma hierarquia, para mim incompreensível, entre estes diferentes bichos: ora comem uns, ora comem outros – e quando não estão a comer, esperam pacientemente a sua vez. Por vezes se juntam – outras vezes não.

Às vezes aproximo-me deles e afastam-se. Confiança em humanos, não têm. Por vezes eu também não!

E lá estão… sentados no esqueleto de uma construção inacabada. Olham para a minha janela, volteando os pescoços sem penas. Imagino que me observam, curiosos.

E eu continuo tricotando palavras e sonhos no meu teclado…

A morte


Por aqui tenho andado, umas vezes ficando, outras passando.

E sempre esta perplexidade do valor da vida.

Será que a vida tem valores diferentes em culturas diferentes? E a morte? Também assim o será?

A minha alma vai doendo quando vejo uma criança ou outra pessoa a morrer sem razão aparente – injustificada, até.

Faltou o dinheiro para os medicamentos, para o transporte para o hospital, para o tratamento. Quantas vezes dinheiro mínimo – o equivalente a uma grade de cervejas. E o desespero toma conta das pessoas e depois…. vem a aceitação do inevitável, evitável!

E transporta-se aquele ser, que já era, numa carrinha de caixa aberta, coberto com algum pano da família – e assim vai, calcorreando os buracos da cidade que já não o magoam. Se os olhos estivessem abertos de ver, veriam as folhas dos mangueiros a deslizar e a luz do sol passando e acariciando o pano. Mas já nada importa. Apenas e só aquela viagem de não retorno.

E depois vem o "tchoro" (funeral) e aí a festa se faz. Aparecem os animais que vão ser sacrificados, para honrar os mortos e para deleite de toda a comunidade, por vezes aparece álcool e são centenas e centenas de pessoas que vêm homenagear o falecido. Ouvem-se os tambores e dança-se.

A tristeza casa com a alegria. Casamento estranho esse.

Olho para os pobres animais. Que olhares tristes. Estão sentenciados de morte. Tentam não avançar – eles sabem o que os espera. E assim… caminhando forçados lá vão as vacas, as cabras, as galinhas – bem querendo fugir à faca que os espera. Desvio o meu olhar.

O meu luto fica mais carregado.


Sunday, June 13, 2010

Procura-se o senhor morto



No Jornal Nô Pintcha do dia 10 de Junho (afinal o dia da minha nacionalidade, dizem) vinha o seguinte Aviso:

"Por se encontrarem em parte incerta, no âmbito do processo disciplinar e em cumprimento do número 3 do artigo 58º da Lei 9/97, se avisa de que se encontram pendentes no Gabinete de Apoio e Contencioso do Ministério da Educação Nacional, Cultura, Ciência, Juventude e Desportos, os processos disciplinares contra os senhores MALI BALDÉ e MORTO BAEM SANHO, professores do Ensino Básico Unificado e do Ensino Secundário, colocados na Região de Bafatá e Liceu Nacional Kwame N'Krumh, respectivamente, e o prazo fixado para apresentação da sua defesa é de 30 dias, a contar da data da publicação do presente aviso.
Bissau, 02 Junho de 2010
O Director
Flaviano B. Ferreira"

Se alguém vir o senhor Morto - digam-lhe para se apresentar - só tem 30 dias....!

Stop mutilação genital feminina na Guiné-Bissau









Fim à mutilação genital feminina

Projecto DJINOPI - Djintis Nô Pintcha (2010-2012)


1 – Introdução

Não existe uma estatística confiável sobre a mutilação genital feminina na Guiné-Bissau. A UNICEF estima actualmente uma prevalência de aproximadamente 45% de mulheres entre 7 e 12 anos (39% na capital, 48% no campo). Assim, estima-se hoje 300.000 mulheres afectadas, com outras cerca de 80.000 meninas, de praticamente todas as idades, em perigo de serem mutiladas. Variadas formas de amputação do clítoris são praticadas, principalmente em comunidades islâmicas, mas também por pequenos grupos animistas, . As comunidades com esta prática vivem sobretudo no Leste (regiões de Bafatá e Gabú), no Norte (Oio e Cacheu) e no Sul (Quínara, Tombali e Bolama-Bijagós) do país. Entre os fulas ou fulanis, que representam cerca de 30% da população, a MGF é praticada no marco de uma cerimónia curta (fanadozinho), em geral em meninas entre 7 e 12 anos. Entre os Mandingos (outros 30% da população) e pequenos grupos da etnia Susu e Nalu são atingidas meninas da mesma faixa etária. Na etnia Beafada pratica-se a clitoridectomia (estirpação do clítoris) em crianças de 9 a 12 anos.

Todos os grupos, menos os fulas, realizam as operações em longas cerimónias com uma até seis semanas de duração, que incluem rituais com danças e cantos, além de instruções práticas e morais sobre o papel da mulher adulta nas respectivas sociedades (fanado grande). Neste contexto, não raro meninas recém entradas na puberdade são casadas. Entre a população urbana com boa educação formal a MGF tem tendência a ser menos praticada, mas de nenhum modo é incomum. Para pais e mães com uma postura crítica com relação ao tema é bastante difícil impor-se entre os partidários da prática no círculo familiar, sobretudo as avós. As etnias que não praticam nenhuma forma de MGF, são as etnias animistas, o que envolve o risco de interpretações étnicas de acções contra a MGF. Em 1995 o parlamento recusou um projecto de lei contra a MGF. Tem ocorrido um intenso debate público em torno de uma possível lei contra a MGF, no qual o presidente da Comissão Nacional Islâmica pôs-se a favor da prática e o presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos, contra a prática, verificando-se assim um tema fracturante na sociedade guineense.

2 – Grupos Alvos do Djinopi:

O grupo de meninas - estimado em torno de 80.000 - que ainda não sofreu a MGF, mas devido ao seu meio cultural está directamente em risco. Dessas, cerca de 40.000 meninas vivem nas três regiões principais Gabú, Bafatá e Quínara. Os critérios de selecção destas zonas foram, por um lado, devido à dimensão do problema (em Gabú e Bafatá vive o maior grupo em risco), por outro lado a representatividade étnico-cultural dos grupos alvo.

Outros grupos alvos, com os quais o projecto irá trabalhar de forma diferente, são os pais e outros membros importantes da família, excisadoras (fanatecas), autoridades religiosas, homens jovens em idade de casar, homens adultos e velhos como formadores de opinião e autoridades tradicionais. Em cada um desses grupos encontram-se apoiadores, mas também cépticos e adversários da prática da MGF. Finalmente também serão envolvidos multiplicadores como profissionais da saúde pública, professores de escola primária, políticos, funcionários de ministérios, ONGs, programas de desenvolvimento bem como jornalistas de jornais, rádios e TVs.

Thursday, June 10, 2010

Nhala - a minha tabanca


No caminho para o sul e quilómetros e quilómetros percorridos a minha alma vai ficando grande. Estou próxima de Nhala, a minha aldeia adoptada por mim há 30 anos. É uma aldeia que fica no fundo do cruzamento. Viramos à direita até acabar o caminho – e lá está ela. De um lado a aldeia, do outro a antiga escola onde trabalhei e vivi 2 anos e à entrada aquele velho mangueiro que bem me conhece e lá no fundo do mato, a descer, a minha fonte.

Os quilómetros vão passando e a emoção vai crescendo dentro de mim. Um reencontro de tantos anos, de tanta coisa passada, de vidas que já não são, de memórias, de lágrimas e de uma imensa alegria.

Chego. E para meu espanto a aldeia tinha-se alargado para a estrada. E agora há uma Nhala de Baixo e uma Nhala de Cima. Muitas casas novas, escola, mesquita… e as pessoas, esperando-me – não me reconhecendo. Com tantos anos passados, os mais velhos da altura, já poucos estarão vivos. As crianças tornaram-se adultas e eu de volta.

Começa a reunião com a população – e eu sentada tentando reconhecer em cada rosto um rosto antigo – mas a memória falha-me, apenas fica dentro de mim rostos de meninas que comigo partilharam a minha vida 2 anos.

Explicou-se à comunidade a razão do projecto e foi dito que eu tinha escolhido aquela aldeia porque a considerava minha – houve um ligeiro movimento de espanto que percorreu as pessoas e no meio uma mulher perguntou “És a Ana Paula” – Sou. – Respondi. Tinha-me esquecido que as pessoas daqui assim me tratavam. E os sorrisos alargaram-se num espanto temporal. “Brinquei na tua cama”. – disse outra mulher – que naquele tempo atrás era uma das meninas. A minha emoção cedeu e as lágrimas saíram em liberdade. Era a Maimuna. Embaraçada com os meus olhos embaciados tentei recuar um pouco mas as mulheres rodearam-me, tocando-me, abraçando-me – talvez tentando fazer sentido da minha pessoa de há 30 anos atrás. Para eles eu teria que já ser uma mulher velha de cabelos brancos – e não era o caso. Perguntarão para si próprios – “mas estes brancos não envelhecem como nós?”

Nestes 30 anos não tive 10 filhos, não tive que trabalhar no campo, não tive que andar horas e horas debaixo do sol a acartar água, não tive que inventar maneiras de alimentar a minha família – e tantas outras coisas que nos diferenciam – apesar de mulheres que somos nós.

Acabou a reunião. O carro arrancou e olhei para a estrada do cruzamento – para a minha Nhala de Baixo. Voltarei num destes dias para te saudar, para abraçar o velho mangueiro e visitar a minha fonte.

Até um destes dias.

Lavagem de carros



Fico perplexa com a preocupação das lavagens de carros.

Pela cidade há equipas de homens jovens que se especializam nesta tarefa – e é um ver de rigor neste processo. Lavam por fora, lavam por dentro, limpam os tapetes, puxam lustre, lavam as jantes e, para espanto meu, até lavam os pneus. Tudo fica brilhando debaixo deste forte sol.

A equipa perto da minha janela aproveitou um cano público de água, bem junto às raízes do mangueiro, onde a recolhem para as lavagens. Às vezes há alguns conflitos na propriedade do cano. Não entendo muito bem mas deve haver regras entre a equipa para a recolha e quando as regras não são cumpridas há problemas.

E por aqui param os mais variados carros, táxis, privados e outros de alta cilindrada e ainda outros de organizações internacionais. É uma azáfama… mas ao sábado e domingo há pouco trabalho para a equipa. Segunda será um bom dia de trabalho. Os carros saíram todos para o fim de semana e estarão cheios de poeira na segunda seguinte.

Quase que me sinto envergonhada do meu carro. Eu que espero que venha o Inverno para o carro se lavar. Poucas vezes o lavo e os pneus, nem ver….

Espero que o meu carro nunca saiba sobre o tratamento dos carros aqui. Até poderá fazer greve e sentir-se mal tratado um com a auto-estima em baixo. Quando chegar a Portugal vou lavar o carro – mas as jantes não! Há um qb para tudo na vida.

A humidade de Bissau ou a entrada das chuvas


É que aqui as chuvas têm uma entrada, um ficar e uma saída.

E a entrada faz-se difícil – como um processo de sedução. Um piscar de olhos, um rebolar de ancas, um trejeito de ombros. Entra não entra…e nós esperando que a chuva se faça à terra.

Desde 2ª que o calor vai subindo em Bissau. Não tenho a menor ideia de quantos graus – mas para mim está batendo os quase 40º. Quando possível pego na caneca e mando água pelo meu corpo – nem me enxaguo. Assim fico com o prazer da água, por pouco tempo mas mesmo assim são uns minutos bem curtos e bem bons – e depois lá vem a vaga de calor e humidade.

Este puxar de chuva mas chuva não vem, cola-se aos corpos. A humidade é um peso. Podemos pesar a humidade? Eu sinto-a nos meus olhos e nesta dificuldade em andar rápido. Pois é – qualquer movimento mais rápido e lá vem a transpiração. Uma verdadeira sauna – grátis. Nem a ventoinha nos salva desta humidade. As pás lá se mexem em velocidade mas o ar que agita é quente.

Nem uma brisa, nem um movimento subtil das folhas do mangueiro em frente à minha janela. Está tudo à espera que a chuva rebente, forte, impetuosa e sem amarras.

Nestes meus dias de transpiração contínua, espero ansiosamente pelas 10 ou 11 da noite para sentir o ar condicionado do meu quarto – e assim dormir tranquila sem o rebolar do corpo no colchão procurando a parte seca de transpiração.

Porque é que não há mais 23 horas durante o dia?